sexta-feira, 18 de junho de 2010

Livro “Diálogo em Tempo de Escombros” apresentado no Palácio da Bolsa

O livro “Diálogo em Tempo de Escombros” da autoria de D. Manuel Clemente e José Manuel Fernandes foi ontem apresentado no Palácio da Bolsa, seguido de uma sessão de autógrafos.

Rui Moreira no seu discurso salientou que “este é um encontro que parecia pouco provável” e é “um diálogo sobre o país, o mundo do pensamento e a religiosidade”.

O Presidente da Associação Comercial do Porto referiu ainda tratar-se de "um livro muito bem escrito, um diálogo entre duas pessoas muito diferentes, com um conhecimento profundíssimo da sociedade portuguesa e da história” e salientou “é um encontro precioso conhecendo a dimensão ética destas duas pessoas”.

Discurso integral:

Senhor Dom Manuel Clemente, Excelência Reverendíssima,
Senhor Doutor José Manuel Fernandes,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,

A empreitada que me propuseram, de apresentar o livro de Dom Manuel Clemente e de José Manuel Fernandes, constitui um desafio. Desde logo, porque não sou filósofo, sociólogo ou historiador. Admito por isso que o convite que me fizeram esteja relacionado com o facto de esta apresentação decorrer aqui, nesta casa. Tive, por isso, o cuidado de esclarecer os editores que a cedência deste espaço não implicava qualquer contrapartida dessa natureza, desde logo porque ao abrir o Palácio da Bolsa a esta iniciativa, me limitei a cumprir com a missão da Associação Comercial do Porto, de inquirir das necessidades e promover não só a prosperidade mas também a ilustração da comunidade de negócios e da população em geral. Ora, estamos hoje perante a apresentação de uma obra que é, sem sombra de dúvida, um importante contributo para esse desiderato, e diante de duas pessoas com uma rara dimensão cultural.

Poderia, naturalmente, limitar-me a elogiar os autores, que todos muito consideramos, e a dar lhes as boas-vindas. Tive a honra de ser cronista do jornal Público enquanto este foi superiormente dirigido por José Manuel Fernandes e, quanto a Dom Manuel Clemente, já tive oportunidade de destacar, nos meus escritos, o seu enorme contributo cívico. Referi, no meu livro “Uma questão de carácter”, que a sua vinda para o Porto tem sido uma bênção para a diocese e para a cidade.

Poderia, também, tentar resumir ou sintetizar aquilo de que o livro trata, o que seria uma tarefa difícil pela multiplicidade e complexidade dos temas que são abordados. Optei, em vez disso, em falar da questão da dimensão portuguesa, que é um dos temas iniciais que preocupa ambos os autores, e que está presente em toda esta obra.

Aliás, quando José Manuel Fernandes questiona “se mais do que saber se nos atrasámos, importa perceber se o sonho da convergência com a Europa – um sonho velho de muitos séculos e que agora parecia ao alcance da mão – não se terá desfeito”, Dom Manuel Clemente responde dizendo que “Portugal só é viável fora ou para fora de si mesmo” porque, para além de ser parte de “uma Europa que não se pode esgotar no seu centro habitual mas deve reencontrar-se onde as suas fronteiras medievais se abriram ao Mundo, do Atlântico aos Urais”, tem também uma dimensão luso-africana e luso-brasileira, que é fundamental para Portugal e para a Europa.

Creio que neste tempo de escombros, em que as nossas confortáveis certezas se desfazem em pó, numa altura em que há um discurso apocalíptico que não propõe nem oferece soluções, e em que aqueles que decidem os nossos destinos parecem não compreender esta nossa dimensão, esse é um tema crucial.

Senhor Dom Manuel Clemente, Senhor Doutor José Manuel Fernandes, minhas senhoras e meus senhores,

Portugal pertence à Europa mais antiga, marcada pela emergência do Império Romano. Enquanto estado, nasceu no primeiro renascimento, no renascimento do século XII, e participou activamente na cultura cristã da Idade Média, que a Europa moderna posteriormente renegou como se fosse obscura e intolerante, mas que de facto foi brilhante, não apenas na religião, mas também na filosofia.

Portugal pertence à Europa cristã intacta, que resistiu à divisão de Lutero, e que ficou fiel a Roma. Portugal é, também, um dos poucos países que teve a fortuna de resistir incólume ao suicídio europeu do século XX.

É certo que, depois de uma epopeia expansionista, os ventos da história reduziram Portugal à sua dimensão europeia original, mas nem por isso afectaram a sua essência. Tal como acontecera após a independência do Brasil, podemos dizer, trinta e cinco anos após a descolonização do século XX, que mantivemos laços culturais e humanísticos com os outros povos com quem tivemos contactos. Em rigor, esses laços ainda existem, também, e são miseravelmente ignorados, na India e até no Extremo Oriente, onde a nossa influência política e estratégica não existe desde os tempos dos Filipes.

E isso acontece, como Eduardo Lourenço nos ensina, porque fomos os primeiros europeus a compreender que a civilização europeia, apesar dos seus avanços, não era a única com dimensão cultural. Ao contrário de Espanhóis, Franceses, Holandeses e Ingleses, para quem a Europa tinha uma superioridade humanística que contrastava com os outros povos, que eram vistos como selvagens, nunca tivemos uma visão sectária do mundo, como se comprova pela leitura da carta de Pêro Vaz de Caminha que, ao contrário dos espanhóis, nunca duvidou que os índios fossem seres humanos…

A verdade é que essa nossa consciência, porventura menos sofisticada, não excluía os outros, não negava a sua existência. Nesse sentido, a nossa cultura era mais modesta, mas mais sábia, do que a desses países que achavam que a sua cultura era o paradigma.

Creio que essa original mundividência da civilização portuguesa - e falo de civilização porque não se trata apenas de um traço cultural - não se esgotou, tal como não se esgotou o proselitismo de muitos outros povos europeus que tem dificultado a plena integração europeia, o que faz de nós um elemento importante, diria mesmo fundamental, para a Europa que queremos construir ou, como D. Manuel Clemente a descreve, de “uma Europa que se queira”.

Mas, essa Europa que se queira precisa de ser reinventada. Nos últimos séculos, o homem europeu começou por tomar consciência de si próprio, apreendeu a criticar-se a si mesmo e a questionar tudo o que inventa. A laicização europeia começou por essa altura, durante o século XVIII, mas foi seguramente nos últimos sessenta anos, e depois desses tais suicídios colectivos, ou seja das Guerras Mundiais que devastaram o continente, que essa laicização se intensificou. Durante esses anos, e apesar da influência que a religião teve na libertação do jugo comunista e, por isso, da afirmação da liberdade, a verdade é que a Europa virou as costas a essa sua identidade civilizacional, através de um liberalismo libertário, que prometia a felicidade e a satisfação imediata de todas as necessidades terrenas.

Voltando ao pensamento de Eduardo Lourenço, estávamos nós, os europeus, nessa felicidade, celebrando “a morte de Deus”, explicando a religião como uma reacção natural ao destino que é o obstáculo da finitude humana, quando descobrimos que os outros povos e os outros continentes não concordam com essa nossa lucidez extrema. Subitamente, descobrimos que esses povos também são felizes, apesar de as suas religiões continuarem a fazer parte da sua identidade, enquanto cultura e civilização. Descobrimos, também, estremunhados pelos ataques às torres gémeas, que o fim da história, que Fukuyama imaginara, e que não divergia do reino da paz perpétua de Kant, não estava para breve. Na última década, percebemos que o reino do tédio infinito continua a ser uma utopia, porque o homem é vírus do planeta que tudo corrompe.

Ora, à medida que o Mundo nos ia parecendo mais perigoso, com ameaças dificilmente perceptíveis à luz dos nossos velhos conceitos estratégicos, o sonho europeu também se foi esbatendo. Sem o perigo do comunismo, sem o espartilho da cortina de ferro, a Europa esboroou-se, dissipou-se num alargamento incontido, agravado pela burocratização da política e pela inépcia das instituições nacionais e supranacionais. Hoje, a Europa vive um clima de pessimismo, porque duvida das suas energias e porque sente que está a perder no confronto com os outros blocos económicos e, em particular, com as outras civilizações. E, note-se, civilização é, por definição, um confronto.

Antes, éramos nós, os europeus, quem pedia contas a essas civilizações, quem ingeria nos seus destinos, quem lhes impunha hábitos e costumes. Hoje, são eles que nos pedem contas, que nos exigem que acomodemos as suas diversidades, que se sentem insultados pelos nossos hábitos libertários mesmo quando os limitamos às nossas fronteiras físicas. Pior do que isso, acham que estamos perdidos e que eles estão salvos. Corremos, por isso, enquanto negamos a coerência das nossas origens, o risco de nos confrontarmos com a fé absoluta que os outros têm. Ora, a “não fé”, e a dúvida do que somos, não nos é o anjo da guarda mais propício.

Todas estas transformações tiveram um forte impacto em Portugal, que acabara de descobrir a Europa como o seu último e incontestado destino. O impacto da democratização e da adesão, a rejeição da sua essência e da sua história, os complexos de culpa pelos erros do passado, transformaram a nossa sociedade. Em duas gerações, os pilares da nossa sociedade foram atacados pela tentação jacobinista. Há quarenta anos, dizia-se, e com razão, que os três pilares da nossa sociedade eram Deus, Pátria e Família. Todos eles têm estado sob ataque cerrado.

Sempre houve quem recusasse ou duvidasse da existência de Deus, mas nunca aconteceu, como hoje, ser moda, e garantia de inteligência, recusar a sua existência; a Pátria tornou-se algo de difuso, um valor pelo qual ninguém está disposto a morrer; a família está debaixo de uma série de ataques sem precedentes. Por outro lado, a escola não foi capaz de desempenhar a sua função, como novo pilar social e cultural que poderia atenuar e contrabalançar a crise desses pilares tradicionais, e que poderia abrir, a todos, as portas do conhecimento, enquanto a liberdade cedo se confundiu com a impunidade, porque o regime foi incapaz, desde a primeira hora, de garantir a equidade e a justiça.

É neste contexto histórico de profunda incerteza e angústia que este livro, enquanto diálogo, tem um papel muito importante. Como escreveu José Tolentino Mendonça no seu prefácio, “a modernidade determinou uma recomposição do lugar público concedido ao cristianismo e há embaraços e impasses, de parte a parte, ainda por ajustar”. Esse ajuste, ou reajuste, é um trabalho que deve implicar e envolver ambas as partes. E, como se comprovou com a recente vinda de Sua Santidade o Papa a Portugal, e com as suas palavras, a Igreja Católica está, mais uma vez, um passo à frente, nesse nosso reencontro indispensável com as nossas origens e com a nossa essência.

De facto, Portugal precisa de reabilitar a sua mundividência, que lhe permite ser a porta de entrada e de saída da Europa. Precisa, também de se reencontrar com a sua essência cultural, de rejeitar o novo ateísmo e o anti-clericalismo, e de desistir de ser o campeão europeu das causas fracturantes. Precisa, para isso, de se libertar dos falsos moralismos, tantas vezes hipócritas, e de reencontrar uma espiritualidade que, não sendo exclusivamente religiosa – porque a espiritualidade não é vedada aos laicos - não pode ignorar a importância que a religião cristã e católica tem no país, e que é um importantíssimo factor de coesão social, principalmente em tempos de ansiedade.

Não será esse, seguramente, o único remédio para todos os nossos males, mas é essa a nossa missão urgente. É essa a única forma de subsistirmos perante as ameaças externas, de não nos vergarmos aos ultimatos das grandes potências, de não nos submetermos aos novos poderes transnacionais, de reencontrarmos um rumo que nos permita subsistir às ameaças e de assumirmos um papel relevante na tal “Europa que se queira”, de que nos fala Dom Manuel Clemente. Este “Diálogo em Tempo de Escombros” é um extraordinário e lúcido contributo para um debate necessário e indispensável, em que todos os portugueses, independentemente das suas crenças e convicções, devem participar.



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