A gestão de um orçamento por parte do Estado é em muitos aspectos similar à gestão corrente que todos fazemos em nossas casas. Existe sempre a necessidade de perceber que receitas terá para afectar aos custos que prevê que venham a ocorrer durante um determinado período de tempo.
O Orçamento de Estado é o mapa de toda a actividade financeira do Estado e deve servir para definir qual o destino a dar aos dinheiros públicos e decidir políticas financeiras, económicas e sociais.
Deverá respeitar três questões fundamentais:
Em primeiro lugar, a Adaptação das Receitas às Despesas
As despesas deverão ser previstas de acordo com receitas que estima arrecadar e estas deverão ser apenas as necessárias para suportar as despesas previstas.
Em segundo lugar, a Limitação das Despesas
Deverão ser respeitados os princípios da inscrição orçamental e do cabimento de verbas.
Em terceiro lugar, a Transparência
Permitindo que os cidadãos compreendam as políticas que o Estado pretende implementar. Ao tornar claras as despesas a realizar e quais as fontes de receita, o Estado transmitirá segurança aos contribuintes e todos ficarão a saber quais as áreas que são privilegiadas e para onde serão encaminhadas as colectas.
Naturalmente, a transparência implica, também, fiabilidade e consistência, de forma a reduzir o risco de fortes variações, já que a elaboração do Orçamento é uma previsão económica das receitas e despesas do Estado durante um determinado exercício, e por isso sujeito a muitas variáveis endógenas e exógenas.
É importante que, para além destas questões e de forma a ser possível aferir o que se está ou não a fazer, a política orçamental tenha rapidez nos efeitos, garanta impactos directos na economia e seja sustentável no tempo. Esta é, seguramente, a questão crucial num momento de crise como aquele que vivemos, uma situação de emergência que afecta a economia, ou melhor, as várias economias, desde a das famílias à das empresas, sejam elas pequenas, médias ou grandes.
Olhemos então à Situação da Conjuntura.
O ano que está agora a terminar caracterizou-se pela enorme instabilidade dos mercados mundiais com consequentes impactos na economia nacional e no bem-estar dos cidadãos. A crise do mercado hipotecário de alto risco americano, o denominado subprime, cujos primeiros sinais de alarme e consequências surgiram nos Estados Unidos e rapidamente se alastraram para a Europa e restantes continentes, mostraram ao mundo, rápida e claramente, a completa volatilidade e instabilidade dos mercados.
Esta agitação financeira, que coincidiu com um período em que a economia já vivia sob o espectro do aumento muito significativo do preço do petróleo e das outras matérias primas, do agravamento das pressões inflacionistas e do aumento das taxas de juro fizeram com que aquilo que começou numa “bolha especulativa” tenha motivado a falência de inúmeras instituições mundiais anteriormente tidas como inabaláveis.
Muitos analistas afirmam que "a desvalorização das acções pelo mundo atingiu o nível da "Grande Depressão" dos anos 30, ou da prolongada recessão dos anos 90 no Japão". Pessoalmente, creio que estamos em território ignoto, e que esta crise não é comparável a esses episódios.
O que se sabe é que as medidas de combate à crise financeira, entretanto anunciadas pelos diferentes governos mundiais através da criação de garantias para o sistema bancário, não conseguiram, ainda, estancar a volatilidade. Na Europa, as intervenções do Banco Central Europeu, com sucessivos cortes na taxa de juro de referência, não tiveram os resultados esperados.
Depois de ter atingido valores históricos, a Euribor, referência para muitos dos créditos contratados em Portugal, continua a recuar, situando-se abaixo dos valores atingidos em Janeiro do ano passado. Dados recentes apontam para a continuação da tendência de descida. Para esta situação contribui decisivamente a descida da taxa de inflação na Zona Euro. Mas, a crise de liquidez do sector bancário reflecte-se fortemente na atribuição e concessão de crédito, o que tem forte impacto não apenas no consumo, mas também no investimento privado.
Ao mesmo tempo, assiste-se também à descida vertiginosa dos preços dos combustíveis e dos produtos alimentares. Aquilo que poderia, em condições normais, transmitir às famílias a sensação de ganho de poder de compra, e por isso acelerar o consumo e aquecer a economia, não parece estar a funcionar. Como prova disso, o indicador de confiança na zona Euro, que agrega os dados e expectativas de consumidores e empresas, está no valor mais baixo desde Agosto de 1993, momento em que, tal como agora, a economia europeia acabava de entrar numa recessão. Em Portugal, o Instituto Nacional de Estatística anunciou a 27 de Novembro do corrente ano que o valor do indicador de clima económico, diferente do publicado pela Comissão Europeia (pois não inclui a confiança dos consumidores), registava “o mínimo histórico para a série iniciada em 1989”.
Ou seja, as economias mundiais estão em recessão e, também, em deflação. Naturalmente, a economia portuguesa não escapa a essa sina, e é por isso que a política orçamental do governo para 2009 aponta especial atenção ao emprego, à requalificação da economia e ao apoio a famílias e empresas com problemas. Como apostas base do orçamento para o próximo ano, o governo definiu mecanismos de apoio e coesão social e a criação de medidas de incentivo à competitividade da economia.
A primeira questão que se coloca, é sobre a exequibilidade dos parâmetros. Ora, como base para a elaboração do Orçamento de Estado de 2009, o Governo estimou um crescimento real do PIB na casa dos 0,6%. Este valor foi imediatamente posto em questão pelas estimativas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e da Comissão Europeia que previram para o mesmo indicador valores muito inferiores. Reflexo disso é o valor de 0,1%, assumido pela Comissão Europeia como o crescimento real esperado da economia portuguesa em 2009. As mais recentes notícias demonstram que, infelizmente, o optimismo do Governo não contagiou a realidade. Poderemos estar a caminho de um orçamento rectificativo, com o consequente agravamento de impostos…
Quanto às medidas que têm vindo a ser tomadas, e que estão reflectidas no OGE, é justo reconhecer ter existido de facto, por parte do Governo, um cuidado em procurar elaborar medidas contra a crise actual em que se encontra mergulhado o país, indo de encontro às necessidades concretas das famílias e das pequenas e médias empresas, tal como manifestado no Sumário Executivo do Orçamento de Estado 2009.
Mas, o Orçamento enferma, também, de extraordinárias contradições. Um bom exemplo tem a ver com o nível expectável dos aumentos salariais. Em virtude da actualização dos escalões de IRS, os trabalhadores que tiverem aumentos salariais menores que 2,5% irão beneficiar de uma diminuição da carga fiscal. Situação contrária sucederá aqueles que em 2009 vierem a obter aumentos superiores ao valor percentual anteriormente mencionado. Ora, isto acontece no mesmo país e no mesmo ano em que o mesmo Governo determinou o aumento de 2,9% nos salários da Função Pública, um valor acima da inflação esperada e que resultará num aumento da despesa corrente não inferior a 4%.
No enquadramento actual, esta medida reveste-se de um carácter puramente eleitoralista, desconexo da política macroeconómica e fiscal, como acima fica demonstrado, e com um impacto muito relevante na despesa.
O orçamento reflecte, também, a crescente desconfiança das autoridades e o desenfreado policiamento fiscal a que se tem assistido e que tem, como reflexo, um efeito de boomerang que mais cedo ou mais tarde irá penalizar a administração pública. Agora, A administração fiscal passa a ter acesso directo e sem pedido de autorização às contas bancárias de contribuintes que tenham o IRS calculado através de métodos indirectos devido aos sinais exteriores de riqueza que parecem desadequados aos seus rendimentos. Ora, já existia na Lei esta possibilidade de consulta, mas a novidade para 2009 passa pela dispensa de comunicação ao cidadão. Diferentes personalidades emitiram sobre este ponto opiniões com diferentes sentidos. Alguns apontam esta norma como sendo violadora do direito à reserva da vida privada. Outros, como é o caso do fiscalista Saldanha Sanches, advogam que a declaração de rendimentos do contribuinte só faz sentido se puder ser validada, por isso, a única forma de o fazer é acedendo à conta bancária e não admitem que o fisco venha ter um comportamento abusivo, pois esta actuação será justificada quando se tem imposto a pagar. Neste ponto em particular, é importante questionar o seguinte: como é que se provam as diferenças entre os sinais exteriores de riqueza e os valores declarados? Terão as Finanças elementos capazes, com formação para fazer tal avaliação? Fica em aberto uma questão sensível e que, como tal, deverá ser utilizada com a devida parcimónia. Mas, é lícito também perguntar quem serão os alvos preferenciais destas investigações. Num país claustrofóbico e rancoroso como o nosso, é muito provável que este instrumento sirva para a caça às bruxas, e mais não digo…
No campo dos incentivos à competitividade das empresas esqueceram-se medidas que poderiam ser fulcrais para esse objectivo, nomeadamente a eliminação definitiva do pagamento especial por conta, substituindo-o por um regime simplificado para micro e pequenas empresas. Poderiam ter sido repensados a redução dos prazos de reembolso de IVA, actualmente totalmente desadequados à realidade destas empresas e o consequente alargamento dos prazos para o seu pagamento. Estas medidas poderiam funcionar como uma “almofada” para muitas empresas que, antes de receberem seja o que for dos seus clientes, já tem que ter disponível para entrega os valores deste imposto. Para piorar este cenário, em resposta à decisão do Supremo Tribunal Administrativo de Maio de 2008, que veio ilibar de punição as empresas que falhassem a entrega do IVA ao Estado motivada pelo não recebimento dos seus clientes, o Orçamento 2009 reforça a atenção sobre a falta de pagamento dentro do prazo legal. Por que não passar do IVA devido no momento da prestação do serviço ou da factura para o IVA devido à data do efectivo recebimento? O caminho para a mudança começa a ser trabalhado. Ainda este ano foi criado o movimento cívico “IVA com recibo” que procura reunir assinaturas suficientes para levar este debate à Assembleia da República.
Fica-se, assim, com a sensação de que, mais uma vez, como sempre fizeram os consecutivos governos do bloco central, se está a dar com uma mão para tirar com a outra. O orçamento, fortemente maquilhado e de cunho eleitoralista no que diz respeito à despesa corrente, é de improvável realização. Segundo Luís Campos e Cunha, se viesse a ser aplicado tal e qual, e mesmo sem o agravamento da crise, colocaria o défice próximo dos quatro por cento.
Naturalmente, perante a inexequibilidade de aumentar a receita, e com a despesa corrente insuportavelmente onerada, o Governo terá de reduzir no investimento público. Mas, o que é grave, é que os cortes ocorrerão necessariamente no bom investimento público, nas pequenas obras que são sustentáveis, que são descentradas e descentralizadas, que têm máximo impacto directo na economia, que são de rápida execução. Devia-se, por isso, apostar na requalificação urbana, o que teria impacto imediato nas indústrias da construção civil e de materiais e no emprego, e no aproveitamento dos recursos florestais, com impacto no emprego, na política energética, na factura do CO2, na prevenção de incêndios e na balança de pagamentos. Em vez disso, o Governo continua a apostar em projectos e iniciativas com impactos a cinco ou a dez anos, desajustados para as necessidades que agora se verificam e insustentáveis no futuro. Projectos como o novo aeroporto de Lisboa e a Rede de Alta Velocidade, sofrem destes “males”.
No caso concreto da Rede de Alta Velocidade, parece ainda mais simples perceber a razão pela qual o referido investimento deve ser adiado, quando percebemos que este projecto, no caso concreto da ligação entre as duas principais cidades portuguesas, Lisboa e Porto, permitirá um ganho muito reduzido no tempo de deslocação face à duração actual da viagem e quando se percebe que a taxa de incorporação nacional, em equipamentos, será muito próxima do zero.
É no mínimo ridículo e de seriedade duvidosa que se invoquem, agora, argumentos keynesianos para defender infra-estruturas excessivas, de duvidosa utilidade, de impossível auto-sustentabilidade, de excessiva concentração geográfica. Por um lado, porque terão efeito num limiar de tempo muito distante e desajustado da actual crise, e não agora, quando a economia precisava de ser aquecida. É inacreditável que os que agora defendem esse keynesianismo se tenham esquecido, e ainda esqueçam que, ele deveria ter sido utilizado nesta região do país que tão necessitada já estava, antes desta crise.
Aquilo que se exige, afinal, da política orçamental, é que ela sirva para aliviar os principais motores da economia. A classe média baixa, que deveria beneficiar ainda que temporariamente de uma redução de impostos, por exemplo na retenção na fonte do seu IRS, viu, em vez disso, a sua situação agravada, nomeadamente com as ultimas alterações ao orçamento introduzidas pelo PS, no caso da dedução da pensão de alimentos.
Quanto às pequenas e médias empresas, em vez das medidas casuísticas que vão sendo anunciadas, como agora aconteceu para a indústria automóvel, e de medidas que apenas servem para mascarar as estatísticas de desemprego, valia mais que o Governo subsidiasse o emprego, reduzindo as contribuições para a segurança social o que teria um pequeno impacto nas contas públicas.
Devia-se também permitir que as empresas fizessem compensações e acertos de contas com a administração fiscal, nomeadamente utilizado os seus créditos relativamente ao reembolso do IVA para abater às suas contribuições, como por exemplo o infame Pagamento Especial por Conta.
Em conclusão, minhas Senhoras e meus Senhores,
Escrevia Rui Tavares, no Público desta semana, e com natural satisfação que, de acordo com as sondagens, o país está a virar à esquerda e que isso não admira porque em Portugal a desigualdade é cada vez maior. É possível que a sua análise sociológica seja correcta. Mas, do ponto de vista económico, a razão pela qual essas desigualdades se acentuam não tem a ver com questões ideológicas. A razão, a meu ver, é o sobrepeso do Estado. Um sobrepeso incompetente, de um Estado que come demais e que nos devolve muito pouco. É isso, mais uma vez, que é evidente neste orçamento.
Infelizmente, este orçamento de Estado é o da cigarra, consentido pela inépcia de quem deveria defender alternativas e pela inércia de todos nós, que somos as suas formigas amestradas e diligentes. Enquanto assim for, o Estado escapa à crise, continua a viver confortável e irresponsavelmente, devorando uma parte cada vez maior no que resta no nosso celeiro.
Intervenção do Dr. Rui Moreira no Edifício da Alfândega, a 11 de Dezembro de 2008, a convite da DELOITTE