Intervenção do Dr. Rui Moreira na Assembleia da República, no dia 15 de Junho de 2009
Senhor Presidente da Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicações,
Vivemos em Portugal. Não vivemos no país do “faz de conta”. Por isso, não vou ser politicamente correcto.
Ora, na última década, acentuaram-se os desequilíbrios estruturais da economia portuguesa.
Olhando ao cenário que precedeu a actual crise,
(i) A taxa média potencial de crescimento da economia caiu de um valor médio anual de 3% para 1%;
(ii) O défice externo (corrente + capital) situou-se em média, desde 1999, em 8% do PIB, atingindo 10,5% em 2008;
(iii) A dívida externa líquida cresceu de 14% do PIB, em 1999, para cerca de 100% em 2008;
(iv) A dívida pública directa (a que há que a somar a indirecta) cresceu de 56% do PIB em 1999, para 67% em 2008;
(v) O volume do investimento na economia portuguesa em proporção ao rendimento nacional tem sido elevado, mas o seu impacto no produto - ou a eficiência marginal do capital - tem apresentado, desde 1999, uma tendência decrescente relativamente à UE.
Olhando mais para trás, para os últimos 20 a 25 anos, verifica-se que houve uma fraca eficiência do investimento público e um queda acentuada da poupança nacional bruta. Além disso, o investimento nacional, na soma do público e do privado, tem-se concentrado de forma desproporcionada nos sectores de bens e serviços não transaccionáveis, abrigados da concorrência internacional, o que não contribui para o crescimento sustentado nem para as políticas de emprego a longo prazo.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
É, não só mas também por todas essas razões, que vivemos uma década em que a economia portuguesa teve um mau desempenho, o que a fez divergir em relação às economias da União Europeia.
Precisamos de recuperar desse atraso estrutural, mas precisamos para isso de ser mais eficientes e selectivos, pois a época em que era possível apostar em modelos de elevado endividamento acabou. E, esse problema de liquidez não parece ser um problema conjuntural da economia mundial mas, pelo contrário, de uma tendência de longo prazo. Além do mais, e por razões exógenas que me dispenso de identificar, é essencial controlar a dívida.
Por isso, dada a escassez de meios e de recursos, e tendo a economia portuguesa
(i) uma taxa de investimento que é o dobro da taxa de poupança nacional bruta,
(ii) um défice externo anual elevado e uma dívida externa em crescimento explosivo,
Portugal não pode deixar de ponderar e seleccionar, de forma muito criteriosa, o seu investimento em função da componente estrutural da sua crise, que se estende para além da conjuntura actual.
Deve aplicar os recursos financeiros mobilizáveis em investimentos prioritários para a melhoria da competitividade nacional, para o aumento do rendimento nacional e para o controlo a prazo da dívida externa. Não se pode defender mais e mais investimento público, quando se sabe que há um custo de oportunidade directo relativamente aos investimentos privados, e sem que se avalie qual será o impacto desse investimento na crise que é estrutural. É preciso avaliar, judiciosamente repito, a taxa de incorporação nacional de cada investimento, a sua sustentabilidade a longo prazo e o impacto no emprego de curta, média e longa duração.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
É, no mínimo, de seriedade duvidosa, que se invoque a actual crise para defender a inevitabilidade e a urgência de projectos que já antes estavam na calha, e que já então eram defendidos à luz de uma conjuntura que era, precisamente, a oposta do que é hoje. Não quer isto dizer que não seja preciso investimento público. O que defendo é que é preciso melhorar a qualidade e acertar a pontaria, concentrando os recursos naqueles projectos que promovem o aumento da produtividade e da competitividade, com impactos no rendimento nacional, no défice externo, na dívida pública directa e indirecta e no emprego sustentável. E, como se sabe, o investimento público não precisa de ser todo ele corpóreo.
É verdade que com a democracia, surgiu a necessidade de investir em hardware que o país não tinha. Hoje, é preciso investir no software. Se é fácil identificar, por exemplo, que a justiça coloca um enorme constrangimento à nossa competitividade, em especial das pequenas e médias empresas, que representam a maior parcela do tecido produtivo do país e do emprego, e que além disso é um problema que afecta o equilíbrio social, é óbvio que a sua reforma, se necessário for de forma drástica, representa uma prioridade maior do que uma qualquer ponte ou aeroporto.
Chegamos assim ao que aqui nos trouxe. E desde já afirmo que defendo hoje, como sempre defendi, que Portugal precisa de desenvolver uma nova rede ferroviária. Ao contrário da terceira travessia do Tejo, da terceira auto-estrada Lisboa – Porto, do novo aeroporto que ignora a opção lógica da “Portela + 1” é um projecto que pode ser virtuoso.
Não concordo, sequer, com aqueles que recusam liminarmente os projectos ferroviários da alta velocidade porque duvidam da procura imediata que deles resultará. Sabe-se, pela experiência do Plano Rodoviário Nacional, que essas expectativas acabam, a prazo, por ser excedidas.
Mas, é óbvio que antes de avançar com projectos parcelares, era preciso ter definido objectivos e parâmetros muito severos porque, e é bom que isto seja dito, têm elevados custos de oportunidade, no que toca aos fundos públicos, aos apoios da EU e aos financiamentos disponíveis, ao contrário do que tem sido veiculado para a opinião pública.
Ora, quais deveriam ser, então, os objectivos do novo plano ferroviário?
Creio que deveria garantir-se a construção de uma nova rede em bitola europeia, aproveitando e transformando para essa bitola algumas das linhas existentes, tal como está a ser feito em Espanha. Essa rede deveria garantir o transporte rápido e seguro de passageiros e de mercadorias.
Creio que, relativamente aos passageiros, era exigível que essa rede servisse os nossos principais núcleos populacionais. Interessava, também, que ficasse ligada, da forma mais coerente possível, à rede espanhola. De tal forma que, no futuro, a rede ferroviária peninsular pudesse operar como um gigantesco metro de superfície, em que as suas principais cidades seriam ligadas em rede.
Creio que, relativamente às mercadorias, o objectivo passaria por diminuir a dependência da rodovia e atenuar a nossa posição excêntrica face aos nossos mercados-alvo. Exigia-se que se conseguisse uma ligação à rede espanhola mas também, que se conseguisse um pipeline que nos ligasse às redes europeias, garantindo aos espanhóis, a troco desse “direito de trânsito” que nos proporcionariam, um acesso à nossa fachada atlântica e aos nossos portos atlânticos, que sempre cobiçaram. Esta questão das mercadorias é, note-se, a mais importante das vantagens da nova rede.
Naturalmente, a rede deveria ser “multipurpose”, servindo passageiros e mercadorias, e deveria ter como vectores, e pontos de passagem obrigatórios os portos, aeroportos. Pelo contrário, as plataformas logísticas, enquanto nós intermodais, deveriam localizar-se em locais servidos por essa nova ferrovia.
A rede deveria também servir para a coesão territorial, porque sendo feita com fundos de coesão, não se aceita que os grandes projectos públicos sejam, por hábito que este Governo transformou em lei, factores de divergência entre uma única região do país, que por acaso já não é elegível para esses fundos, e as outras regiões deserdadas deste nosso Portugal.
Construída com bom senso e em tempo, esta rede ferroviária seria muito importante para a nossa competitividade. E, houve um tempo em que estas questões estratégicas foram levadas a sério. Como se sabe, foi por isso que o velho projecto do T, com uma ligação ao centro da península, e um istmo próximo do aeroporto que então estava projectado para a Ota, foi abandonado. Optou-se então pelo desenho em “Pi”, com uma linha vertical a percorrer a fachada atlântica e estendendo-se, a Norte, até à Corunha e duas linhas transversais, das quais uma ligaria Lisboa à rede espanhola através da alta velocidade enquanto a outra privilegiaria as mercadorias e ligaria Aveiro às redes espanhola e europeia, através do nó ferroviário de Medina del Campo.
Mas, depois, sucederam-se os governos, deixou-se de pensar na estratégia, e por essa indecisão nacional, perdeu-se a capacidade negocial com Espanha. Assumiram-se compromissos com os nossos vizinhos que equivalem a uma submissão aos seus interesses, de que a nova linha ferroviária entre Sines e Badajoz é o exemplo mais acabado – porque apenas serve Espanha e só beneficia um operador portuário estrangeiro a quem Sines foi oferecido a troco de uma renda perdulária, que não traz vantagens para Portugal.
Depois, em vez de se discutirem as prioridades lógicas, Lisboa-Madrid passou a ser uma prioridade obsessiva e por um argumento de que “os outros também têm este brinquedo”, que é o cúmulo do novo-riquismo e a pretexto de compromissos internacionais, o que é convenientemente esquecido relativamente a muitos outros projectos e que são empolados, já que os compromissos apenas comprometem a ligação geográfica das duas redes. A norte, decidiu-se pelo avanço da ligação do Porto à Galiza, utilizando a linha de Braga e unindo esta cidade à fronteira por um novo e caríssimo canal. Um disparate em termos de cronologia, porque os únicos pólos que poderão gerar a procura que hoje não existe (e que de outra forma nunca existirá), são o aeroporto Sá Carneiro e o porto de Leixões, que não serão escalados na primeira fase, e porque esta linha só faz sentido se continuar até Lisboa.
Agora, e a propósito da ligação ao Porto, surgem os mesmos que não contestaram a linha Lisboa-Madrid a colocar dúvidas sobre a sua importância. Ora, o que o senso comum diz é que a linha do Norte é, de todas, a mais prioritária. Precisaremos de uma nova linha de alta-velocidade em canal paralelo? Não sei, porque gostaria de ter a certeza que não é possível, ou não vale a pena, retomar e concluir rapidamente a modernização da que já existe, optando, por exemplo, pela construção de “bypasses” que comportam um crescimento na frequência e aumentam a sua capacidade. O que tenho a certeza é que se a ideia é fazer uma linha insensata, que passeie pelas futuras sete maravilhas do país, que serpenteie pelo novo aeroporto e pela nova travessia, que poupe apenas alguns minutos a troco do que hoje é oferecido a troco de muitos e muitos milhões, então mais vale nada fazer.
Mas, minhas Senhoras e meus Senhores,
O problema é de fiabilidade. É que desconfio da acção furtiva de técnicos e responsáveis, que se escudam na sua pseudo-superioridade. Os tais que, com sobranceria, nos dizem que nós, os comuns diletantes, não percebemos nada do assunto. Ora, foi essa gente, a que se chama o lobby ferroviário, quem nos atolou na trágica modernização da linha do Norte. É esse lobby que continua a cercear o raciocínio e a encantar os nossos bem-intencionados governantes. Para estes, quaisquer obras são um sinónimo de progresso. O problema é que já sabemos que também têm custos e podem ser um insustentável desperdício.
Creio, por isso, que é preciso reavaliar a rentabilidade económica do projecto TGV e, se necessário for, alterar o cronograma das suas prioridades. Mas, para isso, é preciso gente que pense, e gente que saiba concretizar o projecto. Que olhe para um conceito estratégico mais alargado, e não pense, apenas, nos eventuais benefícios de um surto de novas obras públicas por razões conjunturais ou por qualquer outra razão. E, para isso, bom seria que, por uma vez, se inibissem TODOS aqueles que estiveram ligados ao fiasco da linha do Norte, que uma vez eram decisores e outras vezes eram consultores, de participar neste projecto, seja em que qualidade for. Se for essa gente a decidir e a realizar, então direi que mais vale parar com tudo o que se está a fazer.
Em suma, é preciso pensar na rede ferroviária, de que a ALTA VELOCIDADE É APENAS UMA COMPONENTE, como um projecto integrado, que deve adequar-se a um conceito estratégico para o país, que não existe. E, uma vez tomada a decisão, deve ser implementada através de um cronograma que respeite as prioridades e as possibilidades de financiamento. Deve ser feito por pessoas sérias e competentes, e deve ser feito com tecnologia de ponta mas sem novo-riquismos ou luxos. A actual rede foi desenhada por Fontes Pereira de Melo. Hoje, precisaríamos de alguém com esse rasgo e génio para saber dividir o trigo do joio, para que este projecto não redunde em mais um elefante-branco. Infelizmente, se esse génio não abunda em Portugal, não existe, seguramente, naqueles que tantos disparates têm feito, a coberto da total impunidade que se vive neste país onde se criminaliza o não pagamento de impostos mas nunca se castiga, nem sequer se questiona, quem os desperdiça.
Em suma, precisamos de uma rede ferroviária para sermos competitivos. Precisamos de uma rede eficiente. O que não precisamos é de uma rede que, por luxúria, acentue o nosso declínio.