terça-feira, 18 de setembro de 2012

Privatização da ANA - Discurso de Dr. Rui Moreira na Assembleia Municipal do Porto



Senhor Presidente da Assembleia Municipal,
Senhor Presidente da Camara,
Senhores Vereadores,
Senhores Deputados Municipais,
Portuenses

Começo, naturalmente, por agradecer o honroso convite para estar hoje, aqui, e pela segunda vez em poucos meses, para vos falar de um tema que a todos preocupa e aflige. Desta feita, para ajudar à vossa reflexão sobre o futuro do nosso aeroporto. Entendo que o tempo de que disponho, por vossa gentileza e generosidade, necessita de ser rentabilizado. Não me alongarei, por isso, em grandes considerações sobre a importância do aeroporto no desenvolvimento futuro da nossa cidade. Esse é um tema que, felizmente, recolhe opinião unânime de todos os quadrantes políticos, de todos os observadores, de todos os cidadãos. Diria apenas, como tenho dito, que a nossa cidade, que se chama Porto, dependeu no passado da sua actividade portuária, da mesma forma que depende hoje da sua actividade aeroportuária. O aeroporto é pois a nossa porta para o Mundo e, simultaneamente, o maior vector da nossa competitividade. Uma competitividade que depende da nossa capacidade de abrir a nossa economia, exportando bens e serviços, de valor acrescentado. É por essa razão que todos estamos muito preocupados com o seu futuro, e ninguém nos perdoará, nos anos vindouros, se não nos envolvermos na discussão sobre o assunto. Tema que, como os senhores deputados bem sabem, esteve sempre na agenda da Associação a que presido.

Dito isto, permitam-me que saliente que não sou um defensor de qualquer modelo de privatização. Nesta matéria, preferiria o status quo a qualquer outra situação. Não se trata de uma questão ideológica, ainda que respeite essas opções. Resulta de uma convicção pessoal de que existe uma dificuldade óbvia em compatibilizar os interesses públicos e os interesses privados que, sendo ambos legítimos, nem sempre podem ser articulados. Bastará para isso dizer, e perdoar-me-ão a simplificação, que o interesse público, salvaguardada que esteja a sustentabilidade do projecto, assenta na maximização do movimento de passageiros e carga, enquanto o interesse privado reside, fundamentalmente, na maximização dos resultados ou, se preferirem, do lucro. Desideratos cuja sobreposição está longe de ser óbvia.

Ainda assim, creio que essa discussão compete aos senhores deputados. É essa a vossa missão, enquanto representantes do povo. A minha presença nesta casa tem um outro objectivo. Entendo que é mais útil assumir que, de uma forma ou de outra, e em função dos compromissos assumidos pelo Estado português, é inevitável admitir que haverá um envolvimento privado na gestão do aeroporto.
Nesse aspecto, permitam-me que tente desmontar um mito, recorrentemente invocado. O mito de que a gestão da Ana é muito competente. Creio, aliás, que o modelo de privatização que foi adoptado tem, como co-autor, o seu concelho de administração. A meu ver, os elogios relativamente à gestão da Ana olvidam, desde logo, que os resultados positivos decorrem de o monopólio público ter uma taxa média por passageiro que, de acordo com um estudo recente divulgado pelo professor João Marrana, da CCDRN, equivale ao dobro da que é aplicada em Espanha.

Ao mesmo tempo, ninguém esquecerá que a administração da Ana defendeu que o novo aeroporto de Lisboa deveria ser na Ota, tendo induzido em erro vários ministros a quem convenceu de que não haveria solução mais conveniente, nomeadamente na margem Sul. Depois, desvalorizou, propositadamente, o modelo Portela + 1, tentando construir um argumento falso de que o actual aeroporto de Lisboa estaria próximo de atingir a sua capacidade plena. Enquanto isso, fez investimentos nesse aeroporto que excedem o custo de construção do aeroporto FSC. E, mesmo quanto ao nosso aeroporto, sabe-se que houve erros de projecto que foram muito convenientes para as construtoras mas desastrosas para o erário público. Reconheça-se o edifício é, além do mais, pouco eficiente em termos energéticos, o que aumenta o seu custo de operação. Finalmente, a ANA foi sempre, e continua a ser neste momento, um instrumento do centralismo. Recordo, a propósito, que a sua administração se opôs à instalação de uma base da Ryanair, questão em que me envolvi, e que só foi resolvida depois de uma intervenção pessoal do anterior primeiro-ministro, que presenciei, e que para isso fora instado pelas forças vivas do Norte. Por fim, a recusa reiterada em divulgar as contas especializadas do nosso aeroporto, o que tem obstado a que se conteste o que tem sido dito sobre a transferência de receitas, é uma prova muito eloquente de que essa administração nunca esteve interessada em qualquer modelo alternativo que não fosse a privatização em bloco que acaba de ser anunciada.


Senhor Presidente, Senhores Deputados,
Como Vossas Excelências bem sabem, a Ana é a concessionária pública dos nossos aeroportos, sendo uma empresa de capitais públicos. Admitindo que é necessário alienar a totalidade ou uma parte desses activos, impunha-se uma avaliação cuidada dos modelos alternativos. Sucede que o modelo que tem sido seguido em outros países, que optaram pela privatização, ou pela concessão a privados dos seus aeroportos, aponta para que haja benefícios na privatização destes em separado. Ou seja, o modelo de monopólio privado que abranja todo o sistema aeroportuário não é o único modelo possível nem é, provavelmente, aquele que permite maximizar os benefícios.

Há, estamos em crer, argumentos suficientemente fortes, a favor e contra cada uma das alternativas, para que a questão assuma um carácter empírico, sendo importante trazer argumentos quantitativos para cima da mesa. No caso português, e para além da questão dos aeroportos dos Açores que têm uma complexidade evidente, sucede que os três aeroportos continentais têm características próprias. No caso da região de Lisboa, sabe-se hoje que o modelo a adoptar, que poderá alicerçar-se no modelo Portela mais um ou pela construção de um novo aeroporto de raiz, ao que tudo indica na carreira de tiro de Alcochete, dependerá, em larga medida, do que vier a suceder com a privatização da TAP, na medida em que só então se poderá avaliar se o “hub” de Lisboa será mantido. Quer isto dizer que, se a ANA for privatizada “en bloc” sem que esta premissa esteja devidamente esclarecida, haverá um factor de incerteza que certamente será descontada no valor. O mesmo não sucede, como se sabe, com o aeroporto Francisco Sá Carneiro ou com o aeroporto de Faro, cujo valor intrínseco e potencial não será afectado por essa variável, na medida em que não dependem da companhia nacional.
Por essa razão, a privatização das concessões aeroportuárias em separado poderia permitir um calendário diferenciado e sequencial, em que a privatização dos aeroportos de Porto e Faro não estaria dependente, no tempo, da privatização da TAP, podendo, no limite, precedê-la com vantagens em termos do tempo de obtenção de receitas. Quanto à concessão de Lisboa poderia ser alienada num prazo posterior, uma vez esclarecida a questão da TAP.

Acresce ainda que o modelo da privatização “en bloc” pela sua dimensão e valor, só será acessível a grandes consórcios, enquanto a privatização em separado pode interessar a investidores industriais ou operadores de aeroportos que dificilmente terão dimensão para concorrer a um concurso que abranja todo o sistema. Ou seja, é lícito deduzir que haveria mais procura, e muito mais interessados, numa privatização em separado de aeroportos com características bem diferentes entre si, o que poderia trazer ganhos extraordinários nos vários concursos e potenciar um resultado final mais interessante, não apenas na dimensão financeira mas também no que ao desenvolvimento regional diz respeito.

Finalmente, é bem sabido que as linhas aéreas, e as “low cost” em particular, têm sempre mostrado grandes reservas quanto aos modelos de monopólio privado dos sistemas aeroportuários, mesmo quando limitados a circunscrições locais (v.g. , Londres) e essa é uma questão particularmente relevante do ponto de vista do interesse público.


Sucede, contudo, que estes argumentos, que em tempo tive oportunidade de apresentar ao Senhor Primeiro-Ministro, não terão vingado. O Governo terá decidido avançar com a alienação do capital da ANA. Ou seja, a transferência do actual monopólio público para o sector privado, o que resultará num modelo de monopólio privado.
Aparentemente, o Governo optou por esse modelo por considerar que garante um maior encaixe financeiro. Creio que o Governo olvidou e negligenciou os custos da regulação, que serão inevitáveis. Acresce, ainda, que esse modelo só resultará num maior encaixe financeiro se os privados acreditarem que essa regulação será inconsequente. Ou seja, o Governo admite, e resigna-se, ao facto de que o monopólio será desregulado, a exemplo de outros que conhecemos. E, bastará ler os jornais para compreender que, por isso, esta privatização já interessa aos grupos económicos que se especializaram nesse saque.

Ora, quer a OCDE, que emitiu um relatório a esse propósito, quer a delegação do FMI, com quem tive oportunidade de falar sobre o assunto há algumas semanas, reconhecem que o Governo não deveria basear o modelo de privatização numa análise custo-benefício financeira. Ou seja, entendem que a maximização do encaixe não deveria determinar o modelo, porque a análise custo-benefício deve incluir, também os factores macro-económicos. Por fim, esse modelo representa, como se sabe, um risco terrível para o aeroporto do Porto. Bastará, aliás, invocar que o Governo, na sua resolução, admite que o modelo visa garantir a capacidade de financiamento das suas actividades e investimentos, nomeadamente de um aumento da capacidade aeroportuária na região de Lisboa.
Compreende-se, hoje, que as incertezas que pesam sobre Lisboa, e sobre o que sucederá à TAP, presidiram à decisão que, para além do mais, interessa a alguns grupos económicos que olham a hipótese da construção de um novo aeroporto, protegido por um monopólio, como uma oportunidade única. O Governo, pelo seu lado, não sabe ainda se necessitará de um novo aeroporto em Lisboa, porque ignora o que sucederá com a TAP, mas sabe que, para que esse aeroporto venha a ser construído pelos privados, terá de ser um Hub. E, para que esse hub ganhe massa crítica, independentemente do que suceda à transportadora aérea, é importante que o aeroporto Sá Carneiro não lhe possa fazer concorrência. Pelo contrário, é uma reserva de procura, principalmente numa fase em que se aproxima da sua capacidade máxima.

Quer isto dizer, senhores deputados, que a opção natural do monopólio privado, e que é legítima do ponto de vista a sua estratégia, será a de moderar a procura no aeroporto Francisco Sá Carneiro, através de um aumento de tarifas que também aumentará o lucro, de forma a resolver a difícil equação de Lisboa.


Sucede que essa lógica, que é, repito, lícita do ponto de vista do privado, colide directamente com os nossos interesses, enquanto região. E, por muito que entenda as expectativas da Junta Metropolitana, não acredito que seja possível garantir uma intervenção directa dos nossos autarcas, ou dos nossos poderes democráticos,  na gestão do nosso aeroporto, se este fizer parte de um monopólio privado. Poderão ter uma missão de aconselhamento, mas não terão intervenção nas tarifas e na atracção de rotas e de operadores porque o privado nunca aceitará essa tutela, independentemente do que possa vir a ficar consagrado no caderno de encargos.

Independentemente dos interesses regionais, que são legítimos, acreditamos que mesmo em termos financeiros, a soma das partes pode valer mais do que a alienação total. Entendemos os constrangimentos que dizem respeito ao financiamento, mas acreditamos que, também esses podem ser ultrapassados.
Seria conveniente, porventura, estudar a possibilidade de criar subsidiárias da ANA, de forma a não prejudicar as condições dos financiamentos existentes, e que dificilmente poderão ser replicadas na actual conjuntura internacional; esse é um dos argumentos que temos ouvido, e que não nos convence.

O que tem sido invocado é que a ANA tem, ainda, financiamentos, muito interessantes, anteriores aos problemas de “rating” da República, e que não poderão ser garantidos se a privatização for feita em separado. Ora, esse é um falso argumento. Em primeiro lugar, porque esses financiamentos terão, garantidamente, uma “change of ownership clause”. Ou seja, poderão ser objecto de resgate obrigatório, se o accionista da ANA deixar de ser o estado português. E, nesse caso, esse ónus pesa, de forma equivalente, sobre os modelos de privatização em bloco e em separado.


Na realidade, a forma de obstar a esse risco de financiamento, se não for possível sindicar a dívida existente e convencer os bancos financiadores da Ana de que não há um acréscimo de risco,  passa por um modelo de subconcessões. Ou seja, um modelo em que a ANA continuaria a ser uma empresa pública, concessionária do serviço público de gestão dos aeroportos. Essa empresa poderia subconsessionar os três aeroportos, em separado, garantindo um conjunto de compromissos e de garantias que podem ser consignados num contrato de concessão, como acontece nos portos. Nesse modelo, a supervisão por parte dos poderes regionais poderia ser acautelada sem grande dificuldade. Poderia haver uma cláusula de trigger, que obrigasse o subconcessionário a fazer obras de ampliação, sempre que o aeroporto estivesse perto do seu nível máximo de capacidade, poderia, igualmente, haver um mix entre rendas fixas e variáveis que beneficiasse o aumento de movimento ou que onerasse a sua redução. Tudo isso são modelos que foram testados nas concessões portuárias que tem tido um sucesso assinalável.

Dir-se-á, e é verdade, que o modelo das subconcessões não permite um encaixe total à cabeça. Sabe-se que esse encaixe se destina a reduzir a nossa dívida externa. Garante, no entanto, uma maior rendibilidade no longo prazo e receitas que entram directamente na conta do défice público. E nada impede, sequer, que haja um pagamento inicial considerável, por parte do concessionário.
Não é difícil encontrar outras modalidades que garantam a gestão autónoma do nosso aeroporto e que não condicionem a política do Governo e aquilo que está previsto no memorando com a Troika. O que não pode suceder é deixarmos que o nosso aeroporto tenha, como destino, fazer parte de um enxoval que será oferecido a quem pague mais, a troco de um monopólio nacional, a quem assuma as incertezas que pesam sobre Lisboa à custa do nosso aeroporto, a quem esteja muito interessado em comprá-lo por valorizar a sua “nuisance value”, e esteja pouco ou nada interessado em aumentar o seu movimento.

O aeroporto Francisco Sá Carneiro é, como todos sabemos, e a par do porto de Leixões, um factor de competitividade crucial para a nossa região. Está por provar que tenha resultados negativos. Os nossos estudos demonstram o contrário, e é essa a percepção dos investidores, na medida em que há interessados na privatização na base stand alone.


No futuro, o aeroporto não deixará de estar sujeito à concorrência dos aeroportos galegos, que concorrem com o seu “hinterland”. Se fizer parte de um monopólio desregulado, esse seu hinterland será dividido entre os aeroportos da Galiza e o novo aeroporto de Lisboa. É esse o risco que pesa sobre uma cidade e uma região que têm, por isso, o dever de reclamar e contestar, propondo alternativas que sāo favoráveis ao todo nacional, e não decorrem de impulsos bairristas. Foi por isso que aceitei o vosso convite.
Muito obrigado!

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